segunda-feira, 25 de abril de 2016

Há bases bíblicas para o feminismo?

"Que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja nossa própria substância." Simone de Beauvoir

Se dependesse de alguns, ainda estaríamos vivendo nos moldes da era vitoriana. É muito fácil pagar uma de defensor da família tradicional, paladino da moral e dos bons costumes, e com isso, detonar qualquer movimento social que não caiba nesta moldura. E é assim que se critica as feministas, como se estas fossem as principais responsáveis pela deterioração da família. Já li e ouvi de alguns líderes religiosos que o número crescente de homossexuais se deve ao fato das mulheres terem deixado seus afazeres domésticos e o seu papel de mãe para se dedicarem a uma carreira profissional. Não precisa ser nenhum sociólogo/psicólogo para perceber a desfaçatez desta alegação.

Creio, sem medo de errar, que as sementes que fizeram eclodir o movimento feminista estão todas espalhadas ao longo das páginas da Bíblia Sagrada. Nem a forte misoginia das culturas antigas conseguiu cimentar o solo onde estas “sementes de mostarda” foram deliberadamente depositadas. Daí encontrarmos figuras como Sara, a quem Deus ordenou que Abraão desse ouvidos. Rebeca que participou ativamente da conspiração para transferir a bênção de Esaú para Jacó. Raquel que era pastora de ovelhas, atividade então restrita aos homens. Débora, juíza em Israel, numa época em que os juízes governavam no lugar de monarcas. Poderíamos citar inúmeros exemplos (se veio atrás de versos bíblicos, perdeu sem tempo. Vou deixar para outra ocasião). Ademais, ninguém valorizou mais as mulheres do que Jesus, a ponto de aceitá-las como discípulas, o que nem os filósofos gregos com toda a sua genialidade aceitaram.

Mas gostaria de destacar uma mulher com a qual costumamos ser injustos: Vasti. Quando seu marido, rei Assuero, resolveu dar um banquete em seu palácio, Vasti, sua esposa, não deixou por menos, e promoveu também seu próprio banquete. Ao ser convocada para deixar tudo e atender a Assuero que pretendia ostentá-la diante dos convidados devido à sua exuberante beleza, Vasti simplesmente se negou a atender. Aquela era uma mulher à frente de seu tempo, que não queria ser vista como um objeto decorativo, mas um ser humano portador de dignidade intrínseca, que sabia pensar por si, que tinha sentimentos, vontade própria, e como qualquer outra mulher, não merecia ser subestimada. Sentindo-se constrangido diante dos convidados, Assuero, orientado por seus conselheiros, resolveu destituí-la, deixando vago o seu trono.

Foi Ester, uma linda jovem judia que venceu o concurso de beleza que visava substituir a rainha rebelde. Quero crer que todos conheçam esta história, e os que porventura não a conhecerem, sugiro que pesquisem. É uma das mais lindas histórias de empoderamento feminino registradas nas Escrituras Sagradas. Ester era bem mais do que um rostinho lindo, um corpo escultural. Graças a ela, seu povo não sofreu um verdadeiro genocídio. Foi sua atuação junto ao rei que impediu que um homem chamado Hamã lograsse êxito em seu intento de extinguir os judeus que viviam na Pérsia. Como o decreto já havia sido estabelecido, o rei não pôde revogá-lo. Mas deu aos judeus o direito de se defenderem do ataque opressor patrocinado pelo próprio estado. Até hoje os judeus celebram o Purim, festa alusiva àquele episódio de sua história. Naquele dia, eles puderam se defender de um estado opressor, fazendo uso de qualquer recurso que estivesse às mãos, inclusive lanças e espadas. Mas jamais foram chamados de terroristas por isso. 

Se pensarmos bem, a ousadia de Ester se deveu ao caminho deixado aberto por Vasti. Mesmo que discordemos de sua antecessora em sua petulância, que a enxerguemos como uma quase vilã (o que não é verdade!), sem ela, Ester não teria encontrado a mesma facilidade para fazer o que fez. Ester simplesmente rompeu com todos os protocolos, arriscou a própria pele para salvar o seu povo.

Vejo hoje uma geração de mulheres desfrutando de direitos que foram conquistados lá trás graças ao atrevimento de muitas Vastis. É fácil criticar aquela geração de mulheres que saiu às ruas fazendo fogueira com seus sutiãs. Mas se não fosse por elas, talvez ainda hoje as mulheres não usufruíssem do direito ao voto. A maioria teria que se contentar com os adjetivos de bela, recatada e do lar. 

Em momento algum flagramos Ester desdenhando de Vasti. Deveríamos, portanto, seguir seu exemplo, e valorizar quem lutou em muitos movimentos sociais, não apenas as feministas, para que vivêssemos numa sociedade mais justa e igualitária. Não fossem por esses, quiçá ainda convivêssemos com a vergonha da escravidão. Talvez não tivéssemos o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso, a Lei Maria da Penha, etc.

Eu, particularmente, acredito que ainda haja muita coisa para mudar até que tenhamos uma sociedade mais justa e equilibrada. Por isso, prefiro colocar-me ao lado dos que lutam por direitos, e não dos que preferem que tudo permaneça do jeito que sempre foi. A única coisa que pretendo conservar é meu idealismo, sem o qual, corro o risco de ser cortejado pelo cinismo e pela hipocrisia.

Se depender de mim, farei coro com quem peita o sistema, esperançoso de que minhas filhas viverão num mundo mais belo, bom e justo do que viveram suas avós. Se quiserem ser dondocas, que sejam. Pelos terão escolhido isso por conta própria e não por alguém lhes impor tal padrão.

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